Críticas de Paloma Franca Amorim
A crítica convidada Paloma Franca Amorim acompanhou o projeto, tanto ensaios quanto a temporada, e escreveu reflexões sobre os caminhos da pesquisa cênica. Seguem abaixo dois textos do processo, seguido de um ensaio sobre a elaboração final da peça, que cumpriu temporada no Auditório do SESC Pinheiros e no Teatro Cacilda Becker.
RELATOS DE UM ENSAIO - EM BUSCA DE CRÍSTOFER - maio de 2022
Um regime totalitário de poder é invariavelmente um mecanismo de dominação de gênero, além de todas as sentenças colonialistas que somam a essa condição o jugo racial como eixo de desigualdades.
Começar minha relação crítica com montagem de "E Lá Fora o Silêncio " do LABTD a partir dessa breve constatação torna a experiência da sala de teatro ainda mais complexa, uma vez que a modulação de um discurso político em cena tenha características especialmente abertas que pressupõem uma interlocução futura desconhecida, com o público, esse que idealmente não tem identidade e nem origem, desenha-se como uma efeméride coletiva prontamente dedicada ao possível (ou impossível) vínculo com a cena teatral.
O movimento anterior, dos bastidores, produção, concepção da montagem em termos dramatúrgicos, cenográficos, poético políticos, está presente no resultado final numa espécie de indício pré-existente, são fragmentos de elaborações de um conjunto de trabalhadores da cena que constituem a totalidade estética que vem à público. A realização teatral é extremamente política em sua própria concepção ensaística. Reunião, acordo, negociação coletiva e, no limite, algum desejo em comum são atitudes políticas extremamente necessárias para que o teatro aconteça. Claro, aqui se está pensando um teatro diferente daquele de apelo comercial em que os modelos de produção propõem relações de automatismo e indistinção dos trabalhadores envolvidos.
Nesse sentido, vamos à sala de ensaio, dentro de condições estabelecidas previamente: sou convocada a assistir à elaboração da primeira cena da peça "E Lá Fora o Silêncio", de autoria de Ave Terrena,
A dramaturgia de antemão nos apresenta dispositivos estéticos que sobrepujam a lógica bidimensional da relação ente leitor e literatura por indicarem a necessidade de um elemento externo capaz de decodificar os enunciados, uma modalidade de filtro de ressemantização da mensagem.
Trata-se de um código realizado em camadas, no texto de Ave a primeira camada de uma carta recebida contém um recado aparentemente banal que ao entrar em contato com a segunda camada, uma folha de papel permeada por quadradinhos cortados que reconduzem o olhar do leitor para a arqueologia implícita do texto, mostra um aviso de perigo, um relato grave sobre as condições das mulheres no interior de uma prisão em pleno governo militar brasileiro.
No Brasil os jornais da época, ora coagidos pelos órgãos de censura, ora atuando como sua linha auxiliar, nos lembram de episódios em que receitas de doces e trechos de poemas épicos eram publicados estrategicamente para ocultar as verdadeiras notícias sobre a política nacional que refletiam o profundo autoritarismo econômico e social dos militares. As receitas de doces e o trechos poéticos tornaram-se artefatos históricos que à época parecem haver operado em duas frentes: como lenitivos políticos, amortizando em tese o horror cotidiano da ditadura, e como elementos de estranhamento sintático capazes de conduzir os leitores a certo estado de interrogação investigativa.
Faz-se necessário portanto um véu que desfaz o véu, isso é, o mecanismo simples de uma folha entrecortada por quadradinhos, todos em uma posição precisamente estabelecida para caber sobre o primeiro texto. É um recurso sutil, como uma chave linguística que apresenta sob o fundo falso da mensagem a sua verdadeira aparência: a elocução do terror descrito em torturas, execuções, sequestros, censura, tecnologias cujo projeto final, em suma, culmina no radical ressecamento do corpo enquanto veículo de humanidades. Uma receita de doce ou um poema de Camões, nesse sentido, criam coberturas de opacidade (protegendo ou evidenciando pelo estranhamento) sobre a denúncia das ações perturbadoras do governo militar.
A encenação de Diego Moschkovich de "E Lá Fora o Silêncio" parece valer-se dessa mesma lógica para expor e explorar as narrativas do cárcere militar. No ensaio que acompanhei, Diego estruturou a cena em que a partir de uma sessão de pitching (uma apresentação de um projeto de roteiro para uma plateia de produtores e distribuidores, ou seja, para uma plateia de pessoas que detêm os meios de produção cultural), os participantes interpretados por Léo Moreira Sá e Diego Chilio - espécie de dupla dinâmica picaresca - exibem sua proposta: uma produção estética que envolve antigas cartas encontradas e caixas de papelão. Nelas encontram-se o nome do remetente: Crístofer, um irmão aprisionado nos porões da ditadura, um homem trans que foi encarcerado junto às mulheres cisgênero que também confrontaram o regime.
Vejamos que essas estruturas disparadoras nos apresentam uma fricção com olhar contemporâneo que diz respeito à percepção do gênero enquanto marcador de diversidade, em face da conceituação hegemônica que se apoia nas determinações de homem e mulher como fixas a propiciamente articuladas para a regulação dos corpos enquanto plataformas sociais naturalizadas. Ave Terrena, nesse sentido, transplanta as ferramentas políticas atuais (originadas a partir de profundos debates históricos de combate à transfobia) para a década de 60, instaurando como disparador uma personagem que ilumina as complexidades da discussão de gênero no interior de uma narrativa cujo conflito nuclear se faz a propósito da corrosão dos direitos humanos oficializada pelo Estado.
É como se Crístofer, através de suas cartas cifradas e decifradas, fosse uma ponte entre passado e presente em duplo trilhar: é ele quem produz os testemunhos sobre a prisão militar e é ele que parece dizer ao tempo-agora sobre a existência de pessoas trans nos processos históricos de disputa política brasileira. Crístofer é, portanto, uma estratégia de revide ao apagamento sistêmico das identidades de gênero que se constituem à margem das normas binárias.
É curioso, portanto, que a personagem - em toda a sua potência discursiva de um corpo que fala e resiste à erosão transfóbica - não exista ainda em carne e osso. Eu me explico: até o ponto dos ensaios que acompanhei Crístofer surge sob o signo da ausência, ele é antes de tudo um ruído espectral que chega para alvoroçar o andamento do pitching como a dizer: vocês não podem transformar minha vida em mercadoria.
Aqui podemos tocar em uma reflexão de Marc Augé, antropólogo francês, no artigo O Passado, A Memória, O Exílio: "O passado, como o fantasma de Hamlet, assombra o presente. A história é 'canibal'".
A imagem de uma história que tudo devora parece descortinar um debate já conhecido pelos grupos de minorias políticas no Brasil, seu passado não escrito e legitimado socialmente avança como um ethos invisível sobre as cidades e as relações. O racismo, as discriminações de gênero e concernentes ao status social cobram altos preços quando a história entra em síntese limítrofe, o momento em que torna-se impossível evitar o processo extrusivo de forças coletivas outrora sufocadas. Crístofer é metonimicamente essa totalidade, apresenta-se como indivíduo e como a sugestão de grupos sociais: a esquerda torturada e morta em casas da morte subsidiadas pelo Estado brasileiro, as corporeidades dissidentes asfixiadas em praça pública.
Ao ensejar uma contraposição ao pitching, operando como o eco de um passado politicamente marcado atravessado por um presente culturalmente mercadológico, Crístofer é por si um dispositivo crítico em cena, sorrateiramente envolve o público ao vestir-se de ato espantoso, seu texto é um corte que interdita a compra e venda de histórias, constrangendo os vendedores. Tão logo a evocação de Crístofer termina, o estado das coisas volta à normalidade, indicando a insistência do discurso hegemônico, bárbaro e territorialista por natureza, que exibe seu poder a todo instante a fim de ameaçar e suplantar toda e qualquer tentativa de ato revolto ou revolucionário.
Do ponto de vista da encenação é importante destacar a presença da música/musicalidade no entorno constitutivo das ações. Felipe Pagliato e Gabriel Barbosa são responsáveis pela organização de um contexto sonoro que atribui vivacidade tanto às camadas críticas da primeira cena quanto às zonas da própria ficção em que as sonoridades são administradas como referenciais atmosféricos naturais. Gabriel Barbosa, de dentro da cena, faz ações percussivas em instrumentos feitos de chifres de animais, dado esse que parece estabelecer uma menção estética aos procedimentos de objetificação e animalização das vítimas da violência estatal. As linhas rítmicas que Gabriel executa trazem à tona novamente a agonística de tempos justapostos: o presente da ação cênica em que a memória de um país está em jogo (um jogo perverso que através do escancaramento da perversidade revela sua urdidura) e um passado determinado pela musicalidade extraída das ossadas de gente tornada bicho pelos cabrestos, currais e antolhos da ditadura.
COMO DEVEMOS CUIDAR DESSES OSSOS? - agosto de 2022
Essa pergunta poderia surgir em circunstâncias narrativas como, por exemplo, uma escavação em um sítio arqueológico, um ritual de enterro ou de exumação, uma análise de dados no interior de um laboratório forense, uma discussão em um museu estadual sem verbas suficientes para manter ideais as condições de temperatura na sala dos artefatos históricos.
Em um ensaio teatral todas as alternativas são verdadeiras, já que estamos falando sobre o comportamento polivalente dos significados cênicos. Nesse caso, é Gabriel – um dos sonoplastas de “E Lá Fora o Silêncio” - quem traz a indagação ao se deparar com o conjunto de mandíbulas e fêmures de animais que tem usado como instrumentos musicais.
A proposta é sonoramente pungente, uma zona rítmica é produzida a partir da execução de Gabriel sobre as ossaturas. As significações são ativamente voláteis. Em um primeiro momento eu as associo ao eco das valas públicas e dos cemitérios clandestinos onde corpos eram e são enterrados anonimamente sob os auspícios de um Estado que se irradia pelo tempo em suas formatações militarizadas, afinal, se nos anos de ditadura comentados pela peça a violência militar era oficialmente governamental, no presente essa violência se localiza dentro da farda policial, no assédio constante às populações negras e periféricas, constituindo sistemas de extermínio que Achille Mbembe conceiturá como necropolítica.
A História da esquerda brasileira, ou do sudeste brasileiro tomado como referência geral do todo nacional, tende a ser perspectivada à luz da classe média – exponencialmente branca - que se organizou a partir de estratégias políticas de confrontamento e da luta armada para combater a ditadura militar. Existe um certo problema de método nas análises historiográficas mais conhecidas que concebe a esquerda como uma homogeneidade sócio-étnico-racial, ignorando as presenças de militantes cuja origem negra, pobre e periférica desestabiliza a ideia que de maneira superficial hoje fazemos sobre os fronts políticos e as lideranças de base. Esse é um signo que reivindica seu espaço na peça “E Lá Fora o Silêncio”. Assim como a fantasmagoria de Cristófer, as presenças negras também falam ao texto como um reflexo da indagação social: onde estão as pessoas negras nas representações estéticas e políticas desse país?
De repente caímos em uma problemática estética que aponta para todo um circuito de ausências de pessoas negras nas salas de ensaio em geral: como representaremos corporeidades não-brancas agora que é importante falar delas em cena? Aliás, não falar delas ou de sua existência, mas falar à sua existência. Os ossos-instrumentos de Gabriel nesse momento soam incômodos porque nessa transição de cena, especificamente, operam a anunciação de uma figura, interpretada por Jéssica, uma atriz negra, que me parece surgir para afirmar a participação da força negra na luta de classes.
Os sons ritmados compõem uma atmosfera folclórica ou pitoresca, na verdade me falta a palavra nesse momento, uma atmosfera que remete àquelas estereotipias sonoplásticas feitas para expor uma aparição mística, de uma mística negra, de uma África idílica tão perpetuada nos contextos de representação cênica brasileira. Não é a intenção de Gabriel, eu sei, Jéssica também não está propondo isso, afinal, ela apenas estoicamente entra, caminha e se posiciona no centro da cena. Mas há uma espécie de aura constituída pela sonoplastia e por sua aparição inesperada que faz prevalecer o manto da sacralização no palco.
Mas por que razão precisaríamos fugir desse tipo de síntese se há precedentes tão bem sucedidos na história do teatro brasileiro?
Podemos citar aqui Abdias do Nascimento, importante referência do pensamento teatral negro moderno, que modulou a poética dos orixás para constituir muitas de suas encenações e de grande parte de seu trabalho pictórico. Abdias positivou tal valor criativo em busca da expansão do imaginário afrodiaspórico na América Latina, por que não valer-se dele também? E eu respondo pensando na multiplicidade que é a prática teatral coletiva: por que a forma nunca está acabada. Porque a coalização entre arte e história exige o experimento da variação. Abdias apresenta-nos uma proposição artística dentre muitas possíveis que não foram contabilizadas na História (mesmo Abdias, o nome sobrevivente, foi durante décadas sumariamente apagado dos cadernos teatrais brasileiros).
Todavia, não foi bem isso que aconteceu no ensaio. Não foi bem a evocação de um sagrado contínuo. Como falei, foi uma atmosfera preparada pela combinação experimental entre música e atriz em cena. Digo que soa inadequado porque parece haver a partir da conjunção desses elementos uma associação sagrada entre a atriz negra e as guerrilheiras, e tento me explicar aqui: soa inadequado novamente pressupor uma hereditariedade política entre mulheres negras e brancas – pelo menos nesse momento histórico. Vou tentar defender a minha visão com os meus próprios ossos, ou melhor, com as cinzas da mulher negra que me precede politicamente, isso é, minha mãe.
E não me acusem de nepotismo teórico, Roland Barthes também tinha uma enorme fixação por sua mãe enquanto a expressão de um tempo histórico não vivido mas buscado à exaustão. Marcel Proust também podemos mencionar, a tessitura que ele estabelece entre afeto maternal e memória marcou a literatura francesa do século XX. Mas nós, mulheres negras, quando reivindicamos nossas mães como referência política somos lançadas a um campo de desqualificação que sentencia nossa ingenuidade política, um viés subjetivista, neoliberal, idealizante. Ora, não há nenhuma idealização na materialidade de uma família negra e das relações entre mulheres negras, pelo contrário, em geral a violência do racismo é tamanha que os poucos espaços de romantização possível são ocupados pelo descanso, pelo afago do sono ou pela euforia da celebração do mínimo: a celebração de ainda estarmos vivas. O que chamamos de ancestralidade é um fundamento político que exige o olhar crítico às trajetórias apartadas vivenciadas por mulheres negras e por mulheres brancas no decorrer da História brasileira.
Se na ditadura militar o movimento estudantil e de base sindical ebuliram como cernes de formação política, é necessário verificar-se a partir de que demografia essas coletividades foram organizadas internamente, considerando marcadores como a divisão sexual do trabalho (que já orienta um olhar historicizante para o interior do sindicalismo brasileiro) e a racialização do acesso discente e docente às universidades na época, fator esse que corresponde à condição econômica do corpo universitário. Recortes regionais também determinam uma análise racial e de classe possível nas pontes e/ou muros entre população e organizações políticas estudantis.
Esse viés nos mostra uma outra realidade que escapa às narrativas oficiais da esquerda e que valoriza as frestas onde se localizaram tantas vozes negras, esmaecidas pelo cotidiano exploratório e racialmente danoso. Nossas mães não eram as guerrilheiras, muitas delas com certeza foram empregadas domésticas, cuidadoras, faxineiras, quando muito professoras, exiladas das convenções que a História oficial da esquerda traça como ponto inaugural da luta política feminista.
Será mesmo que a noção de correlação de gênero associa de maneira natural mulheres negras e mulheres brancas dentro do contexto de enfrentamento à ditadura militar?
Essas são questões que saltam aos olhos quando vejo Jéssica ser anunciada por ossos musicais. Especulo onde estão suas heranças políticas como mulher negra e me deparo com “uma história que se parece com a minha” – parafraseando aqui as conceituações sobre narrativas de mulheres negras formuladas por Tetembua Dandara. É evidente que não parto aqui de um ponto de vista individual e sim sociológico, buscando sempre a paridade racial dentro das fábricas, das células políticas, das organizações, dos campos de conflito. Se essa paridade existe, porque não é discutida? Por que sob o prisma historiográfico essas presenças negras não são valorizadas como agentes conscientes de elaboração política? E, cenicamente, como discutiremos esses apagamentos?
Gabriel tem razão em preocupar-se com os ossos, no campo metafórico ele está se dirigindo ao teatro como ossatura e à prática da História em uma produção estética que pode traduzir (nas traições simbólicas que esse gesto implica) um momento brasileiro de profundas transformações culturais e políticas. Precisamos, sim, achar uma forma de cuidar deles.
AS SILHUETAS DE UM PAÍS COMUM - outubro de 2022
Em um determinado momento o texto de Ave Terrena, articulado formalmente à encenação de Diego Moscovitch, nos leva à fusão entre a memória e o acontecimento teatral agorístico, presente, que também por seu turno produz uma outra natureza de memória, esteticamente organizada, proposital. É quando a personagem Crístofer revela-se o ator Leo Moreira Sá e o ator Leo Moreira Sá revela-se a personagem Crístofer. A personagem traduz o ator e o ator traduz a personagem em ato contínuo. Crístofer fecha os olhos e agora quem vê a escuridão por dentro das retinas é Leo, nomes são ditos através de uma só boca que fala por dois, ou fala por mil: são nomes de homens trans, pessoas olvidadas pelos sistemas sociais que a despeito desse fato existiram em sua concretude e inteireza, caminhantes por trilhas extensas, pontes humanas, paixões, mergulhos.
Leo fecha os olhos e é Crístofer quem enfrenta a escuridão, por dentro a escuridão também é boa, em sua bonança nos leva aos pontos de luz fugidios que ainda precisam ser inventados. Quando Leo e Crístofer evocam os nomes de outros homens trans, reivindicando-lhes a vida e a sepultura em terras de dignidade, os espectadores na sala de espetáculo – ainda que sentados confortavelmente em cadeiras estofadas – somos arrastados também para dentro da escuridão, essa que acomete cada um a seu modo, mas que envolve as mesmas silhuetas de um país comum, uma história de opressão que se faz em traços diversos e suplementares.
Então estamos aqui no teatro, agora a peça já estreou, já fez a passagem desse lugar laboratorial que é a sala de ensaio para um outro pavimento da experimentação: o palco aberto, estilhaçado em sua nudez toda própria. É quando as pessoas envolvidas na composição de “E Lá Fora o Silêncio” expõem seu trabalho ao público, na interlocução primeira do gesto teatral: aquela que transita entre quem vê e o que é visto, da forma como é visto, no contexto em que é visto. Nós, espectadores, dedicamo-nos à ação de ver em um estado diferente, eis o convite que a cena nos faz: sabemos que se trata de ficção, o acordo é selado antes do espetáculo começar, todavia uma peça como “E LÁ Fora o Silêncio” tem um profundo caráter historicizante que nos compromete duramente com a realidade, posto que os indícios de seu arco - ou estatelamento – narrativo dizem respeito a um processo constitutivo da política e da sociedade brasileira, a ditadura civil-militar deflagrada em suas identidades periféricas: a guerrilha do Araguaia, a militância de mulheres, o debate feminista, o debate antirracista, a luta de classes transracializada.
Como um aprofundamento do debate, “E Lá Fora o Silêncio” reflete a complexificação das nuances que as elites políticas, tanto de direita quanto de uma esquerda fisiológica e mofada em ternos e gabinetes, tendem a chamar de identitarismo, em um encapsulamento reducionista que mais uma vez ignora o fato de que a maioria populacional brasileira é, segundo o IBGE, majoritariamente negra e mulher, além de ignorar dados homéricos de violência contra a comunidade trans e travesti que constitui mais de 4 milhões de brasileiros em situação de precarização econômica e social.
“E Lá Fora o Silêncio”, portanto, não lida com os temas concernentes à maioria numérica ou precarizada como se fossem especificidades, mas a partir de sua categorização como fundamento.
Parte-se do intercruzamento de quatro histórias, histórias de guerrilhas urbanas e rurais e de guerrilhas do corpo, sociais, de gênero. No entremeio das vozes que se sustentam ora através da presencialidade cênica, ora através de recursos audiovisuais que me parecem conceber uma espécie de purgatório da História, os espectadores podem dar seu testemunho a um inescapável alinhamento que une em um espectro comum todas as histórias: a ditadura e sua gramática de exclusão e silenciamento, abastecida pelo terror de uma invasão comunista que interpelava como abstração os principais radicantes do temor do empresariado brasileiro junto aos militares, isso é, as transformações sociais concretas que poderiam se erigir a partir da reforma agrária e da conjunção de modificações dentro das políticas de distribuição de renda no país.
A ditadura afirma a todo instante seu viés capitalista agregado ao fascismo de base que se organiza a partir de estratagemas emocionais como o terrorismo midiático, um senso de patriotismo militarizado, o nacionalismo exacerbado de alicerces substancialmente xenófobos, o cisheteropatriarcalismo como modelo estruturante da família nuclear burgobrasileira.
Em cena, essas tantas forças entram em ebulição em um quadro controlado, a situação de comércio das ideias estabelecida pelo pitch, apresentação sintética de 11 minutos na qual Crístofer e seu sobrinho pretendem convencer investidores a comprar a sua trama novelesca, uma história de cartas recebidas e enviadas no coração do Regime Militar. Tudo começa em um tom comediônico que se dissolve a cada transição, dando lugar à gravidade exposta na medula da indústria cultural, a mercantilização da memória e seu saldo embrutecedor.
Depois (lá fora) o silêncio, qual a fração final do texto shakespeareano em que o príncipe Hamlet ainda desfere murmurante uma última busca de sentido para toda a tragédia. Ao contrário do príncipe, talvez porque o estatuto da nobreza hegemônica não lhes caiba, as guerrilheiras Silaine, Iucatã, Alice e seu companheiro de aprisionamento Crístofer diagnosticam o silenciamento como uma barreira a ser vencida, rompida pela palavra que transborda do íntimo e ocupa o espaço público sob a forma da liberdade. A palavra, pelo grito, uma ferida aberta. O grito, navalha afiada, folha de Santa Bárbara, fio de corte da mensagem, a incisão da transmissão radiofônica, a sutura de uma conversa entre irmãos, ainda somos irmãos.