Registros: observação-documentação do processo criativo
Nós, do grupo LABTD, ficamos muito felizes com o interesse e a procura da comunidade teatral, artística e cultural pelo chamamento que fizemos para seleção das cinco vagas (e cinco suplentes) de observadores-documentadores no processo de montagem da peça “E lá fora o silêncio”. O número de inscrites nos surpreendeu: foram 83 ao todo, abarcando pessoas de diferentes regiões do Brasil. Isso nos trouxe um grande desafio no debate para a seleção, sendo que, para decidi-la, foram levados em conta diferentes critérios que se complementam entre si. São os seguintes:
- Conexão e interesse pelo tema da peça, pela pesquisa da memória sobre ditadura e pelo modo coletivo de produção que o grupo vem desenvolvendo desde 2015.
- Diversidade de experiências com o teatro e outras linguagens artísticas
- Diversidade de identidades e lugares de percepção do mundo, envolvendo gênero, etnia-racialidade, faixas etárias e corporalidades. Nesse critério, se inserem também as três vagas reservadas para ações afirmativas de pessoas negras, indígenas, trans e com deficiência.
- Impacto concreto da ação específica de bolsa de estudos de um edital público na permanência e emancipação das pessoas selecionadas em suas trajetórias artísticas no contexto deste projeto e também para além dele.
- Adequação aos critérios apresentados no chamamento, inclusive a disponibilidade para estar presente nos dias de ensaio apresentados no formulário.
- Proporcionalidade das pessoas selecionadas em relação ao alcance do chamamento para diversos perfis de interessades e às expectativas percebidas pelo LABTD na leitura dos textos declarando interesse no projeto.
Seguem abaixo alguns registros realizados por: Felipe Fly, Jessica Marcele, Mariana Queen, Rodolpho Correa, Raiane de Souza, Carla Cristina Miyasaka e ynã oru florydo, além de Thianá Teixeira, que integrou o processo informalmente.
Registro do ensaio 07/04, por Rodolpho, com adaptação de Raiane:
E LÁ FORA, O SILÊNCIO
Existe um pacto de silêncio
Um pacto de verdade coletivo
Algo que não foi dito, que não foi revelado ainda
De uma lado, eu sei, pelos burgueses, mas do outro…
Muitos dos outros tem medo de se pronunciar sobre o caso
Existe um pacto coletivo de silêncio que é como uma manta que cobre o Brasil
E lá fora esse pacto é como uma coberta por cima dos povos, povos e povos
E lá fora…o silêncio de quem se calou por poder e por medo
Mas algumas pessoas são como ruídos
As guerrilheiras, os corpos dissidentes
Que por sua própria existência fazem barulho
Essa pessoas não conseguem viver sem serem ruídos
O ruído rasga a manta coletiva do silêncio
E, por vezes, isso é ensurdecedor, incomoda
O ruído incomoda mesmo
E essa peça é ruído que ressoa na manta do silêncio
Como ato de ruptura
Ela veio rasgar essa manta
Quebrar o silêncio
Conta a memória delas e de tantos
É um ato pela memória
Que não pode ser calada, esquecida, coberta de sangue
E o lembrar de um, você sabe, move o lembrar do outro
E eu tou aqui pra falar a verdade que nunca foi contada
Pq os corpos ques estão no poder não contam, nunca contaram
Somos os corpos dissidentes contando a verdade que nunca foi dita
Vinhemos tirar a manta
rasgar o véu do silêncio lá fora com ruído, barulho
Eu Rodolfo, Ave Terrena, Léo, Anderson, Oru, Fly
e elas, as guerrilheiras do alto da torre
Sendo nós corpos emissários de uma experiência poética
Vinhemos romper com a manta que cobre o que precisa ser visto
Porque lá fora, lá fora o silêncio
Registro do ensaio 27/04, por Raiane:
Observar o outro...qual mapa da pele? Qual invólucro da sua roupa? Olhar, inquietude, precisa de tempo, teia, ritmo, vida, imagem, organismo.
Como fazer uma carta caber dentro da outra? E como fazer um sentir caber dentro do outro? E como fazer um sentir caber dentro do outro? Como te levo dentro de mim, me levando junto com você e sendo você? Preencher esse existir no agora sendo eu, dentro de mim. Como fazer uma ideia caber dentro da outra? Representar dá conta?
A morte da acolhida do afeto, do amparo, do rumo...Agora é a vida que conta a história e talvez eu tenha que aprender agora fazer o amor caber dentro dela.
Não é possível mais contar minha história como narrador, preciso conta-la agora em primeira pessoa nem que eu tenha que fazer uma história caber dentro dos outros, para que entendam que elas presas aqui comigo também sou Eu.
EU sou o Anderson
EU sou a mulher velha
Eu sou o filho
Eu sou o Leo
Quantos sou dentro de mim?
Descomprometer-me comigo e me comprometer com uma representação de mim que não diz nada pra ninguém. Não quero uma imagem torpe que vem de uma lógica de dominação e que não me representa mesmo.
Vida – imagem
Mercadoria – representação
Alienação a representação
Eu quero mais é ação autêntica que não conte, mas seja.
Registro do ensaio 06/05, por Felipe:
Quem me dera fosse uma ilusão
Se a violência fosse uma ilusão, que num movimento de luz pudesse desaparecer;
Se a fome a corroer as pequenas barrigas no relento da rua fosse uma ilusão, que num movimento de luz pudesse desaparecer;
Se o apito da fábrica que também soou a sentença de morte numa fila de demissão fosse uma ilusão, que num movimento de luz pudesse desaparecer;
Se todas as mazelas fossem apenas ilusão, que num movimento de luz pudessem desaparecer, colocaria todas elas nessa caixa de desiluminismo e as faria desaparecer;
Das sombras ressurgiria a liberdade. Como um broto que desponta na terra. Cuido assim das minhas memórias.
Mas nada disso é ilusão. São todas materiais, concretas e custosamente verdadeiras. As ilusões se quebram como o frio na espinha ao som metálico das chaves que saem dos bolsos em direção à cela;
E eu quebro com o frio pelo calor da luta. Nele destilo as dores, os torpores. Sangro em lágrimas os dias difíceis como se do canto do olho até o riscar do chão, uma grama a menos no meu sistema me faz mais leve.
Anos mais tarde, essas gramas se fazem kilos, e esse pequeno trajeto da lágrima se faz kilometros. Já não carrego o mesmo peso, já não estou no mesmo ponto.
Como um broto que desponta na terra, como um movimento de luz que desvela ilusões, como um sono tão profundo que o sonho se faz real.
Registro do ensaio 06/07, por Carla e Rodolpho:
1
Pra todo texto tem uma cifra.
Qual é a cifra dessa peça portanto?
Onde eu encontro
aquilo que me ajuda a ver
tudo aquilo que é dito
sobre tudo que nunca foi dito?
2
Recomeço, revisão do que temos
Narratividade em primeira pessoa, a tentativa de costurar a história e contá-la pelo seu olhar e benefício.
Infiltração da memória
O teatro é um campo onde se estabelece conexões através das expressões, energia interna é o combustível da ação em cena.
Leitura de mesa - uma face deste trabalho.
Atuação é um trabalho de expressividade, como estar traduzindo um texto através de outro texto (não textual mas através de códigos): sublinhando, recortando, demarcando.
3
Uma carta
De dentro dela
Uma pessoa
De dentro dela
Uma pessoa
De dentro dela
Uma história
4
A construção de um espetáculo/obra é um trabalho de marcação/construção de camadas.
Pequenos objetivos a serviço de um objetivo/ação central-transversal
Sentir e se colocar no lugar do ator, dar sentido ao que ele não encontra sozinho (subtexto, monólogo interno…etc)
Objetivos/imagens ajudam a concretizar o jogo.
Cada trecho: parada para respirar e se perguntar: porque estamos dizendo o que estamos dizendo? Como estamos dizendo? Onde estamos dizendo? Para onde vamos dizendo isso?
REPETE, REPETE, REPETE, REPETE, REPETE, REPETE
*o diretor precisa ser detalhista
Um texto de teatro/dramaturgia indica um caminho, a direção interpreta coletivamente (mas a partir de seu olhar) dando significados para o texto (em conjunto com a dramaturga/dramaturgo). O ator/atriz dá significado de acordo com sua interpretação para o seu personagem dentro do arco de significâncias, dialogando com todo o restante.
5
Pra todo texto tem uma cifra.
Pra toda pessoa...
uma cifra?
A cifra é...
meu corpo?
Meu corpo
te ajuda a ler quem eu sou?
6
Decorar verbo transitivo direto e intransitivo: guardar na memória, memorizar, gravar.
Entretanto precisamos entender que não se decora apenas pela palavra mas pelo que está dentro dela, no código que ela carrega, em sua cifra, na sua significância, decorar a palavra como uma carta que está endereçada a um remetente e que precisa ser entregue, a palavra fica conosco e o que é enviado ao remetente é o seu significado/código.
7
Precisa de cifra?
Por que a gente ainda precisa de cifra?
Por que ainda falar em códigos?
O que não pode ser dito?
O que não pode ser ouvido?
Quem não pode ser visto?
8
Cada palavra que cabe na boca precisa ser pensada antes: porque estou dizendo isso?
Quando a palavra cabe na boca de quem disse, como verdade, tomada pela vivência, ela não sucumbe, ela não precisa ser Décor-rada, porque ela apenas é.
Registro do ensaio 18/07, por Felipe:
Como fazer um texto caber dentro de outro texto?
Por muito tempo a criptografia foi considerada uma arte.
Por muitas vezes, uma arte de guerra, cartas confidenciais que só podiam ser lidas por determinada pessoa ou instituições transitavam codificadas, de cidade em cidade, de mãos em mãos.
Numa carta do século XVII em meio a Insurreição Pernambucana, em tupi se escrevia: “Por que faço guerra com gente de nosso sangue, se vocês são os verdadeiros habitantes dessa terra? Será que falta compaixão para com nossa gente?” O tempo e o genocídio criptografam essa mensagem.
Descubro então que a cifra nem sempre é de autoria de quem formula a mensagem. E se isso for verdade, quantas cifras vem escondendo verdades latentes?
Eu mesmo carreguei uma cifra, por muitos anos. Uma cifra chamada gênero. Eu era minha própria mensagem, nasci e logo fui criptografado, assim como todes vocês.
Mas as cartas, são sempre muito mais interessantes depois de descobertas, não é mesmo?
Eu, hoje dono de minha própria cifra, me criptografo a meu gosto.
Eu fiz um texto caber dentro de outro texto. Guardei as letras que me interessavam, joguei outras tantas fora. A criptografia é realmente uma arte.
Depoimento de Rodolpho Correa ao final do processo
Tendo entrado no projeto como observador-documentador, ao final dos ensaios assumiu os papés de assistente de direção e pesquisador de dramaturgia e memória da população transmasculina no Brasil, sendo uma pessoa fundamental da elaboração colaborativa de "E lá fora o silêncio" e na articulação do público trans nas duas temporadas da peça. Abaixo vocês podem conferir seu depoimento:
A partir dos processos de ensaio de “E lá fora o silêncio”, da montagem da peça e da própria dramaturgia que tem como ponto de partida o resgate de memórias, me encontrei em correntes de inquietudes: as pessoas trans-masculinas vivem em um sistema ideológico no qual lutam por liberdade e por suas existências, como lutadores contra um regime? Quantas peças de teatro trazem à cena as transmasculinidades, e como trazem o tema?
Quando me debrucei sobre a camada transmasculina da peça, senti que a busca por representatividade e estética trans ainda estava em desenvolvimento. Eu mesmo enquanto artista e homem trans não sabia onde me ver, não conseguia dizer cinco nomes de pessoas transmasculinas que existiram antes da contemporaneidade, e, assim, notei um espelhamento entre a ausência de nossos referenciais enquanto sociedade e a estrutura textual desta peça do LABTD.
Isso foi uma incessante indagação que me impulsionou a pesquisar a fundo esses registros que tanto revelavam sobre a comunidade transmasculina. Sem as referências, nós não teremos como quantificar o quanto isso nos impacta enquanto coletividade, sem conhecer raízes não conseguiremos crescer como movimento e alcançar outros protagonismos, importantes para que sejamos possíveis em sociedade.
Nós sempre existimos: através das fontes de pesquisa do Arquivo Digital Transgênero, conversas e artigos do escritor, pesquisador e ativista Luiz Morando fui encontrando e me vendo em tantos outros que sofreram, foram mortos e humilhados publicamente em jornais e nas ruas onde viviam nas cidades.
A partir dos registros, adaptamos as histórias para o contexto da peça, levando em conta que alguns deles viveram nos anos da ditadura militar, mas em geral não eram envolvidos com movimentos antifascistas. Isso proporcionou a todo o coletivo do processo uma reflexão: mesmo não sendo militantes ou pessoas politicamente engajadas, eles lutaram por suas existências em um mundo em que ser transmasculine era como ser não-humano. Uma guerrilha que tem o corpo, a identidade e a defesa da própria vida como ponto de partida. Uma clandestinidade que também não está escrita na história.
Juntamente com a dramaturga, Ave Terrena, que possibilitou todo esse trabalho e intersecção, reescrevemos juntos as histórias dessas pessoas, que de longe não tinham humanidade legitimada. Tiramos suas narrativas do lugar do vexame, da humilhação, da invisibilidade e da inexistência, trazendo respeito ao pouco que conseguimos resgatar e reescrever dos nossos transcestrais.
O resgate de registros, documentos e memórias é árduo, pois muitos deles nem ao menos tinham um nome, mas suas histórias por si se dizia e os encaminhava para o que hoje nomeamos como transmasculinidade. É um trabalho também no campo interpretativo.
O resultado da peça levou a outra tarefa, que é sua continuidade necessária: a articulação de público. Sendo esta ser uma das poucas obras que trazem o tema transmasculinidade, de uma forma tão sensível e importante, com uma parcela grande da equipe sendo trans, era preciso que estivéssemos também na plateia, e não só no palco e bastidores. Comecei levantando movimentos, coletivos, grupos de arte e pesquisa e pessoas mais experientes do movimento transmasculine para chegar junto e assistir a peça. A articulação se inicia na estreia e se encaminha ao desenrolar das temporadas. Seguimos!